Existirá uma correlação entre a
intensidade das praxes e o enfraquecimento do movimento estudantil? Em
Coimbra, a tradição académica é antiga e marcou a cidade até hoje. A
violência e os excessos foram uma constante ao longo dos séculos. Nas
primeiras décadas do século XVIII registaram-se diversas ações e
conflitos, animados por trupes, caçoadas e investidas, práticas que
chegaram a ser proibidas por D. João V em 1727. Com o fim da polícia
universitária e da Prisão Académica, a vigilância dos novatos foi aos
poucos sendo transferida, ainda que informalmente, para os estudantes
mais velhos, que controlavam o recolher dos caloiros e asseguravam a
preservação de um código ético consentâneo com o estatuto elitista da
sua condição. Aí reside a origem da praxe. Paralelamente, como se sabe, a
tradição e a cultura estudantis não deixaram de promover formas de
dissidência e contracultura.
Em alguns
períodos, como na década de 1960 em Coimbra, os rituais académicos,
incluindo a praxe e a atividade das "repúblicas" estudantis, chegaram a
ser usados como meios de dissimulação da resistência estudantil face ao
Estado Novo, à Guerra Colonial e a um ensino considerado obsoleto. Todo
este passado se inscreve na tradição e na história da Universidade de
Coimbra. Uma tradição que é desconhecida pela generalidade da comunidade
estudantil mas que é constantemente invocada para justificar os atuais
ritos de iniciação, inclusive por outras instituições de ensino superior
sem passado histórico, e onde, paradoxalmente, as praxes de hoje tendem
a assumir formas bem mais duras do que na cidade que as viu nascer.
Com
a institucionalização da democracia, multiplicaram-se as universidades e
os institutos por todo o país, e os estudantes passaram dos escassos
milhares para as várias centenas de milhares. A invocação das tradições
na atualidade não esconde a sua permanente reinvenção, ao mesmo tempo
que oferece aos jovens a promessa de reconstrução dos laços de pertença
coletiva que têm vindo a esbater-se em diversas esferas de
sociabilidade. É à luz destas tendências e sob a influência de pulsões
comunitaristas, que os comportamentos dos jovens estudantes - sobretudo
em contextos de multidão, de excitação consumista e de dinâmicas de
grupo - convergem na adesão massiva às praxes académicas. A vocação
"associativa" (a Gesellschaft) tem-se esvaziado, enquanto a "comunidade"
(a Gemeinschaft) parece renascer, pelo menos momentaneamente, sob a
forma de uma exaltação ficcionada da identidade tradicionalista do corpo
estudantil.
O caloiro quando chega
está inseguro e, mais do que nunca, precisa do grupo. Por isso aceita os
rituais, mesmo quando as "vozes de comando" dos "doutores" adquirem um
tom mais autoritário, com os corpos em sentido, os olhos no chão ou
colocados na deplorável postura "de quatro". Depois, findo o ritual mais
"duro", passados os momentos de "tensão", é chegada a hora da
celebração. Os jovens adotam hoje o hábito de "beber em festa" (o binge
drinking, como é conhecida essa nova modalidade de convivência): à
mistura com muitos "gritos de guerra" (F-R-A e obscenidades gritadas em
público) e muitos brindes "E vai acima! E vai abaixo! E vai ao centro! E
bota abaixo!" Divertem-se com isso e "integram-se" por esta via. A
posteriori, quase todos dizem maravilhas das experiências de praxe. A
distância que liga a "humilhação" à "diversão" é muito curta; e essa
passagem rápida - dir-se-ia do frio para o quente - cria um efeito de
catarse, que se torna marcante, que fortalece as amizades entre "iguais
na adversidade"; e exalta os laços tutelares entre "caloiros" e
"doutores". Por isso, alguns chegam a gritar pelo "direito à
humilhação". Na conceção de muitos, esse é um requisito para se triunfar
na vida. Enfim, ano após ano, as cenas repetem-se e os papéis
alteram-se com novos protagonistas a reverenciar o poder do
"doutor/padrinho". E assim se fabrica e perpetua a lógica disciplinar e o
"respeitinho" pela hierarquia, uma condição que - supostamente - pode
augurar uma carreira promissora... (in DN, 2/11/2016)